domingo, 29 de agosto de 2010

Lésbicas, Subjetividade e Patriarcado

foto: Alex Brew

Me proponho a levantar aqui algumas questões de como podemos olhar pra questão da subjetivação das lésbicas num mundo onde o sexismo é constitutivo da estrutura social, e onde a Heterosexualidade se apresenta como organização social da sexualidade que favorece o Poder Masculino e o Capitalismo. Assim sendo, proponho também olharmos para as vidas lésbicas como resistência coletiva à submissão aos homens como classe empoderada nessa organização social sexista, e que vejamos que aquilo que move as atitudes e ações e a presença de uma forte campanha pela eliminação das representações da vida lésbica e censura das expressões de afetividade entre mulheres, com consecutiva perseguição e destruição das memórias e narrativas lésbicas e condenação à clandestinidade à vida de muitas como possuindo motivações políticas, no estabelecimento de um regime de gênero e sexualidade que é importante para o funcionamento adequado do Capitalismo, Imperialismo e da continuidade da colonização e dominação branca.

Quais os impactos de uma sociedade de dominância masculina e seus paradigmas na exclusão da visibilidade e vivências lésbicas, assim como na produção de sua existência? De que forma essa invisibilidade e a hegemonia dos discursos da heterosexualidade, que a definem como modelo ideal de existência, afetam as vivências que não se conformam à ela, e de que forma esses discursos atuam como dispositivos de exclusão e de eliminação dessas mesmas vidas, resultando em uma condição de vulnerabilidade?

Sendo a invisibilidade e o repúdio social as condições marjoritárias que subjetivam estes sujeitos, como a hegemonia patriarcal resultaria em vulnerabilidade psíquica para esta população? Como entender essa vulnerabilização para além do marco biológico?

Defendo que precisamos olhar para essa questão de forma política, e que as lésbicas vivem uma condição política, na medida em que seu modo de vida representa um “ataque direto ao direito masculino de acesso às mulheres” (RICH, 1980), uma definição que abrevia em muito o que podemos entender como sendo o Patriarcado. Isso torna necessário entender as condições em que lésbicas vivem politicamente, o que permite sair dos limites impostos pela perspectiva biológica em Saúde Mental.

A divergência da norma heterosexual é a característica que certamente une essa população, muito mais do que convencionalmente se designa por orientação sexual. As violências e outras sanções à que lésbicas estão expostas revelam que a Heterosexualidade é socialmente instituída, e imposta às mulheres. Essa noção foi desenvolvida por Adrienne Rich em seu artigo “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, de 1980, segundo a qual esta representaria não uma prática sexual ou uma orientação nem um fato natural, mas uma instituição, fundada pelos interesses e prerrogativas masculinas, visando garantir o “direito dos homens ao acesso físico, econômico e emocional às mulheres.” (RICH, 1980)

A lésbica é alguém que escapa às definições prescritas à categoria mulher pela Supremacia Masculina, ou seja como diz Monique Wittig (1970): ” não é uma mulher, nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente.(...) Somos fugitivas de nossa classe, da mesma maneira que os escravos americanos fugitivos o eram quando se escapavam da escravidão para se tornarem livres”. O que caracteriza ser mulher, para Wittig, é pertencer a uma categoria que se torna propriedade coletiva dos homens: “Pois o que faz uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que chamamos servidão, uma relação que implica uma obrigação pessoal e física e também econômica (“residência obrigatória”, trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação a qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornar-se o seguir sendo heterossexuais.”

O objetivo das sanções impostas à lésbicas é forçar a participação do coletivo de todas as mulheres (independente de se denominarem ou se engajarem em vínculos significativos com mulheres ou não) na Heterosexualidade Compulsória, na vida econômica patriarcal, no casamento e principalmente nas instituições masculinas, punindo com morte as vidas que não são úteis para esses fins. “A heterosexualidade das mulheres pode não ser uma “preferência’ mas algo que teve que ser imposto, manejado, organizado, propagandizado e mantido”. (RICH)

A Heterosexualidade Compulsória pode ser compreendida como algo que integra a política sexual (MILLET, 1970), ou a economia política do sexo, como define Gayle Rubin, um sistema em que mulheres são objetos de trocas sociais, e portanto, estando na condição de serem circuladas, não poderiam jamais receber os benefícios de sua própria circulação. (RUBIN, 1976)

Uma das maneiras principais da heterosexualidade compulsória lograr sua predominância é também segundo Adrienne Rich tornar invisível a possibilidade lésbica, ou distorcer as opções possíveis de vida à todas as demais mulheres. Isso se torna algo importante quando pensamos a invisibilidade, e a subjetivação das lésbicas num mundo onde estas não se vêem. Também, a sabotagem às lésbicas visa a sabotagem de qualquer vínculo entre mulheres, que poderia vir a configurar um campo de resistência, ou a possibilidade de mulheres independente de serem lésbicas ou não, fundarem suas próprias instituições e Cultura. Com esses esforços, ser uma lésbica se torna uma ‘escolha’ tornada arriscada.

Rich cita algumas formas pelas quais essa dominação se mantém: clitorectomia, pena de morte ao adultério feminino, imagens na mídia e na literatura que distorcem as funções vitais das mulheres, violência sexual, prostituição, romantização e idealização das relações heterosexuais na literatura, novelas, propagandas, "a habilidade dos homens de negar a sexualidade das mulheres ou de forçarem a sua sobre os corpos das mulheres; comandar ou explorar seu trabalho para controle e produção; controlar ou extrair as crianças das mulheres; confiná-las fisicamente e constranger seu movimento; usá-las como objetos de transações masculinas; impedir sua criatividade; ou manter fora de acesso delas largas áreas do conhecimento social e das realizações culturais.”

Citando Catherine MacKinnon, Adrienne Rich também argumenta que forçar a heterosexualidade, seu comportamento (relativo à gênero e sexualidade) e as sanções econômicas que sempre esperam àqueles que transgridem à essas expectativas são também uma forma de integrar mulheres no mercado capitalista. Tanto mulheres quanto lésbicas precisam se apresentar adequadamente feminilizadas para uma entrevista ou na manutenção de um emprego. Demissões de lésbicas, formais ou informais, também são constantes. Tanto isso quanto os abusos verbais frequentemente recebidos por muitas mulheres na rua nos dizem que mulheres precisam mostrar estar sob direito de acesso masculino, e também que somente sob o casamento – ou a propriedade exclusiva de um homem – uma mulher estaria protegida.

Além disso, Heterosexualidade Obrigatória acaba por criar uma condição de identificação com os recursos, instituições, valores, cultura e designações masculinos, como uma forma de sobrevivência. A Masculinidade, ou aquilo que é reconhecido tanto por ela, quanto pela Dominância Masculina - a feminilidade, os papéis de gênero, os binários hierárquicos de passividade e atividade, um parceiro sexual, amizade ou outro tipo de aliança masculina - é como uma moeda de maior valor em circulação, ao qual todos sujeitos sob um Patriarcado preferem vincular. O des-empoderamento das mulheres no contexto de uma sociedade heterosexista e anti-mulher, assim como o desprezo e desvalorização do que é designado feminino, faz com que muito do movimento visando o reconhecimento no universo dos signos da masculinidade seja uma busca de sobrevivência, pertinência social, aceitação, valoração. Isso é um movimento que não ocorre somente com as mulheres que escolhem um homem à uma mulher, mas também com lésbicas cujo ódio lesbofóbico internalizado pode muito bem ser lido como ligado também à misoginia social, ou que reproduzem a heteronormatividade em seus relacionamentos. Assim, a existência de uma supremacia masculina também afeta a existência e a visibilidade das lésbicas, que precisam então tanto passar-se como heterosexuais, esconder ou silenciar sua orientação sexual, fugir do estigma de uma identidade não-heterosexual, ou simplesmente negando tal identidade.

Uma expressão da Heterosexualidade Compulsória também é a reivindicação por assimilação neste mesmo sistema cultural e econômico. Muitas vezes a saída para a exclusão e estigmatização é o desejo de acessar as instituições que garantem pertencimento à heterosexualidade, como se esta se confundisse com a própria definição de espaço público e democrático. As saídas que se buscam são muitas vezes as de se integrar ao sistema heterosexual como ele é, como realmente universal e paradigmático. Essas demandas surgem do sentimento de alienação impostos pela mesma heterosexualidade hegemônica, tal como tentativas de redimição.


Susan Hawthorne em um artigo intitulado “Ancient Hatred and Its Contemporary Manifestation: The Torture of Lesbians” (2006) classifica essas violências como uma situação de perseguição e tortura internacional contra lésbicas, e diz: as lésbicas são uma população diaspórica. Impulsionadas por desejo de aceitação, de um lugar ou de encontrar um pertencimento, assim como outras lésbicas, lésbicas migram. Saem de suas cidades natais, de seus países, pra poderem viver suas identidades. Ainda diz:

“A existência lésbica resiste ao nacionalismo. O que poderia significar para uma lésbica ser patriota? (Hawthorne, 2006) Para esta autora, as imigrações podem ser entendidas como um exílio político. Podemos entender os deslocamentos de lésbicas como motivados pelo sentimento de exclusão e pela busca de um lugar de aceitação e pertença, muitas vezes não vividos em suas famílias, comunidades, escolas e outros lugares de origens. Lésbicas muitas vezes vivem um sentimento de alienação em relação ao mundo e à linguagem, carecendo de espaços simbólicos próprios e referenciais onde se reconhecer e encontrar um lugar seu , e até mesmo por meio dos quais poderiam nomear suas existências.

As lésbicas são uma população não somente fugitiva, mas desleais à cultura. As mulheres são um povo colonizado. Diz Sarah Lucia Hoagland em Lesbian Ethics: “os corpos das mulheres são simbolicamente como as terras tomadas, ocupadas e devastadas, o que se faz através da pornografia, da violência sexual coletiva (...), da publicidade que nos usa pra vender produtos, e outros meios, são como uma campanha permanente que afirma ideologicamente os corpos das mulheres como domínios dos homens. (...). Nossos esforços para caber na feminilidade, comprando cosméticos e realizando cirurgias plásticas, consumindo as informações das revistas “femininas”, mostra que mulheres como um povo colonizado integra parte dos esforços para manterem-se como colônias e colonizadas dos homens.”

Hawthorne reforça:

“...você sabe, quando os colonizadores primeiramente entram em um território, eles despossessam as pessoas não apenas de suas terras, mas também de suas culturas” (2006). Isso classificaria a condição feminina em geral. Matar, violar, destruir e queimar, os corpos (como na caça às bruxas durante a era Inquisitorial) e as produções das mulheres ou sua transgressão dos papéis esperados para um colonizado, foram as maneiras de assim, negar sua existência e destruir sua memória e direito a uma subjetividade. Essa campanha anti-mulher e pelo extermínio das lésbicas continua por meio dos já citados meios através dos quais a Heterosexualidade Compulsória garante sua permanência, eficácia e sua legitimação ideológica.

Portanto, compreender a Heterosexualidade Compulsória como um aspecto central pra opressão das lésbicas, e então isso como central na experiência subjetiva destes sujeitos no mundo existente, permite olhar de outra forma o sofrimento psíquico e as expressões de mal-estar que se apresentam nesta população, invertendo a possibilidade de patologizar a sexualidade não-heterosexual como foi sendo feito na literatura médica de forma a naturalizar a monogamia, a vida familiar e a divisão sexual do trabalho, discurso que hoje foi substituído pelo discurso sexológico-individual. Para além de sua naturalização como grupo específico – seja pelo discurso médico ou pelo sexológico – apresenta-se o caráter político das consequências do rechaço social lesbofóbico, e assim re-pensamos o projeto social presente. Temos que ter em conta esses e outros fatores constitutivos do Poder masculino pra analisar os contextos de vida das mulheres lésbicas e seus impactos na saúde mental das mesmas. Pois como escreve Adrienne Rich: “A incapacidade em examinar a heterosexualidade como uma instituição é como incapacidade em admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo ou o sistema de castas do racismo é mantido por um conjunto de forças que inclui tanto violência física quanto falsa consciência”.



Referências:

RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence, 1980. Acessível em: http://www.terry.uga.edu/~dawndba/4500compulsoryhet.htm [TRADUZIDO EM: http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art01_rich.pdf].

WITTIG, Monique. Ninguém nasce mulher. 1980. Acessível em: http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2009/04/ninguem-nasce-mulher.html

MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa; Dom Quixote,1970.

RUBIN, Gayle: Traffic in Women: notes for a political economy of sex. IN: Retter, Rayna R. Towards an antroplogy of women. New York; Monthly Review Press, 1975.

MAKINNON, Catherine. Sexual Harassment of Working Women: A Case of Sex Discrimination (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1979). In RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence, 1980.

HAWTHORNE, Susan. Ancient Hatred and it’s Contemporary Manifestations: The Torture of Lesbian. The Journal of Hate Studies, Vol. 4, No. 1: 33-58. Disponível em: http://guweb2.gonzaga.edu/againsthate/Journal4/04AncientHatred.pdf

HOAGLAND, Sarah L. Lesbian Ethics: Toward New Values. Pg. 26 à 39. California: Institute Of Lesbian Studies, 1992.

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